Neste 21 de janeiro, Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, o que você vai comer: um acarajé ou um bolinho de Jesus?
É bom ir avisando: estamos falando daquele bolinho de feijão fradinho
temperado com cebola e pimenta, frito em óleo de dendê, muito popular no
Brasil, sobretudo na Bahia, onde nasceu das oferendas às divindades (orixás) do candomblé – religião
brasileira de matriz africana em que dança, música e comida são o tripé
da prática espiritual. Nos terreiros, preparado pelas tias baianas, ele
sempre atendeu pelo nome de acarajé, mas de uns anos para cá alguns grupos de evangélicos tentam rebatizar a iguaria de bolinho de Jesus.
O nome pode soar engraçado, mas ecoa pouca ou nenhuma tolerância com as
práticas religiosas do candomblé. Como se justifica, então, o novo
batismo, em um país que preza sua diversidade religiosa e cultural?
“Não se justifica, mas tem raiz nas baianas do acarajé que mudaram de
religião. Saíram do candomblé, onde essa comida é sagrada e ritual, e
se tornaram evangélicas, mas não queriam deixar de vender o acarajé,
porque tiram daí o seu sustento”, explica Rita Santos, coordenadora da Associação Nacional das Baianas de Acarajé e Mingau (ABAM).
Os pastores de algumas igrejas exigiram dessas mulheres que elas
abandonassem as roupas típicas de baiana, próprias a quem é do candomblé
e ligadas à prática dessa religião, e que mudassem o nome do produto
que comercializavam. Isso, apesar de que o ofício das baianas –
considerado uma das profissões femininas mais antigas do país – entrou
para o patrimônio cultural imaterial do país em 2005, graças ao
tombamento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), em seu Livro dos Saberes. E a despeito delas – mais de 5.200
cadastradas em uma recém-lançada plataforma digital – terem seu Dia Nacional da Baiana de Acarajé, todo 25 de novembro.
O tema não é novo, porém é quente. Há pouco mais de um mês, a Prefeitura de Salvador baixou um novo decreto municipal regulando a atividade,
que diz que para vender acarajé em logradouro público é preciso estar
de bata, de saia e de torço. O esforço para isso surgiu da ABAM e também
foi adotado no Rio de Janeiro
(o segundo estado do país com mais baianas tradicionais, onde,
inclusive, o ofício delas é patrimônio imaterial estadual), no interior
de São Paulo, em Hortolândia, e em outras cidades do país. “A gente
espera que, com isso, as pessoas não usem o nome bolinho de Jesus,
o que é um desrespeito para quem é da religião [candomblé]”, explica
Rita, que além de coordenar as atividades da ABAM, vende acarajé com
seus trajes típicos e seu tabuleiro no Memorial das Baianas, que fica no Pelourinho, em Salvador.
Se os evangélicos mais radicais exigem que se abandone os símbolos do
candomblé na hora de se vender os pratos típicos, o contrário não
necessariamente é verdade. Da diretoria da ABAM, conta sua coordenadora,
faz parte uma companheira evangélica que veste de baiana do acarajé
durante seu horário de trabalho no tabuleiro. “Não tem problema algum.
Basta respeitar”. Para conquistar esse respeito e “para preservar nossa
cultura”, é que a associação se esforça para que cidades como São Paulo
adotem a regra da indumentária obrigatória. “São Paulo tem decreto até
para a venda de cachorro quente, mas não quer regulamentar a atividade
das baianas”, diz Rita, que afirma ter entregado o texto do decreto de
Salvador ao secretário municipal dos Direitos Humanos Eduardo Suplicy,
na capital, à deputada estadual Leci Brandão e a outros políticos do
estado. Seu pedido mais recente de análise está nas mãos da Secretaria
Municipal da Reparação.
Para Nega Duda, baiana que cultua as tradições da Bahia em São Paulo,
cozinhando pratos típicos e organizando desde 2008 um samba de roda à
moda do Recôncavo Baiano, “não faz sentido pegar algo que já existe e
mudar só porque você é de outra religião”. Duda é uma das coordenadoras
do ato que acontece nesta quinta-feira na Avenida Paulista contra a intolerância religiosa e racial
a partir das 19h, com concentração sob o vão do MASP. Duda, que
acredita que as recentes agressões a crença das religiões de matriz
africana é um fenômeno nacional, “que extrapolou a Bahia, está em
Brasília, em São Paulo, no país inteiro”. “Lutar contra isso é um
trabalho de formiga. Caminhamos dez passos para dar 20 passos para trás.
Mas não podemos deixar de lutar, nunca. Temos que usar as redes sociais
para denunciar todo tipo de agressão: a mim, a você, ao vizinho”,
convoca.
Outra forma efetiva de resistência de terreiros de candomblé e
associações de baianas do acarajé, segundo Rita Santos, tem sido sua
auto-declaração como Pontos de Cultura. Os Pontos de Cultura
fazem parte da política pública do Governo federal que garante que
coletivos culturais, sem fins lucrativos e com ação comunitária sejam
certificados pelo Ministério da Cultura como entidade que preserva e
difunde o patrimônio cultural nacional. “Quando um terreiro vira Ponto
de Cultura, parece que as pessoas pensam duas vezes antes de fazer
alguma coisa contra ele. Não deveria ser assim, porque o respeito vem
antes disso, mas é uma maneira da gente se proteger”, declara.
Junto com essa chancela que ajuda a preservar os terreiros, as
baianas tradicionais celebram também a criação de um portal
recém-lançado pelo Governo do Estado da Bahia para difundir seus
saberes, o Bahia tem dendê. E continuam fazendo suas oferendas à orixá Oyá, ou Iansã, preparando sua comida preferida: àkàrà (bola de fogo, no idioma africano yorubá), o vulgo e saboroso (para os que toleram) acarajé.
El país
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